terça-feira, 12 de agosto de 2008

tranqueira

bom galera, tenho certeza que há um enorme público esperando ansiosamente, sentando o dedo no atualizar insistentemente pra tentar ver umas novidades no meu blog.

como sou um cara um tanto preguiçoso vou postar uns textos velhos, o que vocês verão a seguir (leia-se abaixo e depois acima). São textos produzidos para a disciplina "Leitura e Produção de Texos". A maioria dessas obras já são, na verdade, reciclagem de coisas que escrevi há muito tempo, por algum motivo obscuro. Novamente as trago à tona pois julgo importantíssimo para um autor o constante resgate e aperfeiçoamento de seu patrimônio artístico. Ah é, eu já admiti que sou preguiçoso logo no começo né?

então desencana.

essa primeira postagem vem de uma aula em que cada um dizia uma palavra que gostava. em meio a "coragem", "luz", "amor" e coisas afins eu soltei essa somente para descobrir que teria que escrever um texto com ela. pra quem me conhece não é muito difícil captar qual é.

Desespero de Viver
Por André Cabette Fábio

Aquele mar modorrento no qual boiava nunca lhe parecera tão opressor e mal cheiroso. O pontudo e incômodo dedo da morte nunca se mostrara tão próximo. A imagem de dejetos saindo de um encanamento de esgoto para o gélido e indiferente oceano lhe veio à mente. Era isso: um grande e fedorento dejeto pensante. Em alguns momentos seria ainda menos. Como chegara àquela situação? Atingira um fundo inimaginável, poço infinito,fosso de sua carcaça mal tratada. Era educado, vá lá, mas de que isso lhe valia? Sem seu sapato, sua valise ou seu chapéu? Sem alguém que o chamasse de senhor, abrisse a porta e permitisse que lhe apalpasse impunemente? Boiava numa vala comum de corpos pútridos, verruguentos e mal cheirosos, o seu não se distinguindo dos outros mais do que a narina esquerda da direita. A distinção de que tanto se orgulhara, descobria agora, não passava de alguns trocados numa conta bancária, um monóculo bem posicionado e o ar de superioridade que aprendera e cultivara. O terceiro mamilo que tinha de nascença, esse sim, antes um estorvo, agora era a única coisa que ainda o diferenciava dos outros e mantinha um pouco do orgulho de outrora. Daria de tudo para ter seu monóculo de volta. De tudo! Posicioná-lo-ia com orgulho na órbita esquerda, que então pressionaria e elevaria diversos graus. Seu nariz seguiria o movimento e todos ficariam impressionados com sua distinção e destreza no manejo dos canapés das festas para as quais certamente seria convidado. Então mostraria para eles! Ah, como mostraria! Para eles e seus canapés malditos, zombando dele com todo o seu conteúdo saboroso. Tudo o que podia fazer era ruminar seu ódio. Este, no entanto, pouco lhe adiantava. O fulgor raivoso que antes movimentara impérios, queimara celeiros e destruíra aperitivos hoje se apagava frente à realidade úmida. Seu peito, antes estufado e temido hoje estava murcho e repleto de verrugas, como o resto de seu corpo. Seu rosto, antes tão imponente, retrato perfeito de uma estirpe de gentlemen era agora um rascunho, sombra do antigo esplendor, quebrado, corroído, desfigurado pela incessante dor de cãibras que povoavam sua frágil estrutura. As articulações, antes tão articuladas, se encontravam hoje duras como a mais obscura cabeça de bagre no fundo de um congelador pertencente a uma adolescente com distúrbio alimentar. Malditas articulações! Não as movimentava havia dias. Desistira há muito de lutar e se acostumara a boiar a esmo, no triste compasso da resignação.

Num impulso alimentado pela insensatez, autopunição ou, quem sabe, inspiração divina resolveu esticar seu corpo uma última vez. Uma tentativa de acabar com tudo, quem sabe? Ou somente sentir algo diferente do fedor que crescia, ou do roçar de corpos inertes competindo por espaço. A verdade, como já disse, é que não pensou. O tranco vertiginoso e incontido que deu, jogando cada uma de suas extremidades para trás, sem sentir, sem calcular, sem ponderar, apenas agir, teve uma intensidade tremenda, energia que pensava ter há muito deixado sua forma decadente. Mas esse impulso não foi nada perto da fúria que tomou conta de seu corpo após essa ignição virtuosa. A força de exatos dez guaxinins raivosos tomou conta do frágil corpinho que começou a se contorcer numa convulsão descontrolada, elevando-o da superfície tal qual um peixe a se debater fora d’água. Se chocou contra a borda do vidro, para então mergulhar na água novamente e parar, exausto e ofegante. Sabia o que tinha de fazer. Navegou no seu âmago, expedicionou seu útero íntimo em busca das últimas energias, as arrancou então daquele poço profundo e as trouxe à tona com um último esforço, uma última tentativa. Jogou cada uma de suas extremidades para trás, a ponto delas quase se tocarem. Os espasmos convulsivos voltaram e, enquanto se debatia a esmo pelas bordas do jarro, babando e gritando feito um babuíno com gases, ainda conseguiu preservar um fio de lucidez navegando em sua mente desfocada. Teria que preservá-lo ou de nada adiantaria. Bateu uma vez na borda, quase no lugar onde o grande tampo deveria estar. Voou com força para o outro lado, ricocheteou com o traseiro, decolou para o alto, para o alto! Com o fim da ascensão só podia tomar um sentido. Não podia ser! Milímetro por milímetro voltava, rumava em direção à água salgada e insalubre da qual apenas escapara. Seria aquele gosto de ar fresco apenas uma última tortura? Esticou então seu último fio de sanidade, que reverberou e reverberou como uma corda tesa, prestes a se romper. Não se rompeu. Conseguiu girar o seu traseiro para o lado bem a tempo. Ricocheteou molemente na borda do vidro e escorregou sem pressa até o chão, tão sonhado e seco Éden.
Ainda se debateu um pouco na superfície de pedra, bufando e resfolegando feito uma senhora gorda num buffet de saladas. Estava a salvo. Pegou sua valise, calçou os sapatos, colocou o chapéu coco e, por último, e não sem um certo ar solene, posicionou seu monóculo sobre o olho esquerdo. Fora um milionário, um pepino e um prisioneiro, mas agora era a um picles a que aqueles malditos prestariam contas. Pagariam, um por um.